17/05/2017

Peça do mês de maio

O Museu Nacional de Arqueologia (MNA) possui um acervo de várias centenas de milhares de bens culturais. Provêm eles de intervenções arqueológicas programadas ou de achados fortuitos, mas também de aquisições. As peças foram incorporadas por iniciativa do próprio Museu ou por depósito e doação de investigadores e colecionadores. Às coleções portuguesas acrescentam-se ainda as estrangeiras, igualmente de períodos e regiões muito diversificadas. Todos os períodos cronológicos e culturais, desde a mais remota Pré-História até épocas recentes, relevando-se, neste caso, as peças etnográficas, estão representados no MNA. O MNA é ainda o museu português que possui no seu acervo a maior quantidade de bens culturais classificados como “tesouros nacionais”. Existe, pois, motivo constante para a redescoberta das coleções do Museu Nacional de Arqueologia e é esse o sentido da evocação que fazemos, em cada mês que passa, em diálogo com o diferente tipo de atividades que o mesmo desenvolve.

Peça do mês de maio
A INSCRIÇÃO LUSITANA DE ARRONCHES
Apresentado por José Cardim Ribeiro
Sábado, dia 20 de maio, às 15h30


© Hugo Pires a partir de imagens recolhidas por Luís Bravo


A presente lápide foi descoberta em 1997 no Monte do Coelho, cerca de 3 km a noroeste de Arronches (Nordeste alentejano, Portugal), num sítio arqueológico com vestígios da época romana (¿e pré-romana?) sobranceiro à confluência entre a Ribeira da Venda e o Rio Caia. Atualmente permanece em depósito no Museu Nacional de Arqueologia (Lisboa). Consiste numa laje de grauvaque toscamente afeiçoada (alt. max. 89,5 cm; larg. max. 79 cm; esp. entre 2,7 cm e 7,5 cm), destinada a ser fixada no solo em posição vertical. A inscrição, em caracteres latinos mas em língua lusitana, ocupa os 2/3 superior e medial de uma das faces e estende-se por nove linhas, divididas respetivamente em dois corpos textuais de cinco e de quatro. Esta peça poderá datar, talvez, da primeira metade do séc. I d.C.. Trata-se de um dos únicos seis textos redigidos em lusitano hoje subsistentes e a sua relativa prolixidade e razoável estado de conservação permitiram já alguns avanços no conhecimento dessa língua ‘perdida’ – e, sem dúvida, prometem outros mais. Daí a enorme importância patrimonial do monumento, a que acresce o respetivo conteúdo histórico, também ele decisivo para aprofundarmos vários aspetos das práticas religiosas, rituais e sociais da comunidade indígena que as protagonizou – e das dos outros grupos populacionais contemporâneos seus congéneres e conterrâneos. 
Os seis textos em lusitanos hoje conhecidos – Arroyo del Puerco I, II e III, Cabeço das Fráguas, Lamas de Moledo e Arronches –, para além de terem sido todos eles concebidos exclusivamente para o contexto fechado das comunidades indígenas, possuem como elementos comuns o seu carácter público, a sua dimensão social, bem como um tipo de conteúdo que, embora de diferentes formas, converge e sincretiza aspetos religiosos/rituais, políticos, jurídicos e cívicos. Por estas razões se justifica a assumida opção pela língua ancestral em detrimento do latim. Não se trata, pois, de monumentos vulgares e de banal feitura e utilização no seio de uma sociedade, como a romana – e contrariamente à lusitana –, habituada à escrita e, concretamente, à sua dimensão epigráfica, mas sim de um recurso novo oferecido pela Romanização e parcimoniosamente circunscrito ao registo de atos considerados de transcendente importância, outrora fixados e transmitidos através da mera tradição oral. 
Todas as epígrafes redigidas em lusitano testemunham assim, sem exceção, uma realidade especialmente relevante para os indivíduos que as produziram e utilizaram. Neste especto, a lápide de Arronches, com a sua complexa inscrição que rememora o sacrifício ritual de 35 animais – entre os quais 10 touros –, traduz sem dúvida nenhuma uma destas raras ocasiões. O difícil é compreendermos nós, mesmo que longinquamente, a real dimensão e as especificidades desse acontecimento.
José Cardim Ribeiro.

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