07/02/2017

Peça do mês de fevereiro

O Museu Nacional de Arqueologia (MNA) possui um acervo de várias centenas de milhares de bens culturais. Provêm eles de intervenções arqueológicas programadas ou de achados fortuitos, mas também de aquisições. As peças foram incorporadas por iniciativa do próprio Museu ou por depósito e doação de investigadores e colecionadores. Às coleções portuguesas acrescentam-se ainda as estrangeiras, igualmente de períodos e regiões muito diversificadas. Todos os períodos cronológicos e culturais, desde a mais remota Pré-História até épocas recentes, relevando-se, neste caso, as peças etnográficas, estão representados no MNA. O MNA é ainda o museu português que possui no seu acervo a maior quantidade de bens culturais classificados como “tesouros nacionais”. Existe, pois, motivo constante para a redescoberta das coleções do Museu Nacional de Arqueologia e é esse o sentido da evocação que fazemos, em cada mês que passa, em diálogo com o diferente tipo de atividades que o mesmo desenvolve.


Peça do mês de fevereiro
TESOURO DO GAIO, SINES
Apresentado por Mário Varela Gomes
Sábado, dia 11 de fevereiro, às 15h30


© DGPC. Arquivo Fotográfico MNA/Carla Barroso


O que é o Tesouro do Gaio? Para além de o podermos classificar como um conjunto de adornos femininos, fabricados em materiais preciosos, encontrado casualmente em Maio de 1966 na Herdade do Gaio (Sines), ele assume significado histórico extraordinário. De facto, podemos considerar que tal acervo, constituído por gargantilha e duas arrecadas de ouro, contas do mesmo metal e, também, de prata, cornalina, resina e pasta vítrea, amphoriskos e alabastron de vidro polícromo, escaravelho de faiança, engastado em aro rotativo de prata, pendente de lápis-lazúli, etc., representa, no processo histórico, o momento em que o extremo Ocidente da Península Ibérica entrou, de modo decisivo, em contacto com populações do Mediterrâneo Oriental, nomeadamente as designadas pelos Gregos como Fenícios, participando no complexo mundo cultural orientalizante que se desenvolveu entre os séculos VIII e VI a.C.
Durante aqueles séculos aportaram ao Sul de Portugal importantes inovações, trazidas do Mediterrâneo Oriental, como a técnica de redução do ferro e fabrico de armas ou ferramentas naquele metal, a produção de cerâmicas montadas ao torno rápido, o uso da escrita, uma das mais antigas da Europa, e os primórdios do urbanismo, dando origem a surto civilizacional inovador e permitindo a definição de novo período histórico que designamos por I Idade do Ferro.
O Tesouro do Gaio integra aquele contexto e levanta múltiplas problemáticas. Desde logo a que se prende com o conceito de tesouro, ou com a origem e processos técnicos de produção dos diferentes artefactos que o constituem, mas também com o seu uso e função, etc.
Quem era o proprietário do Tesouro do Gaio? Uma dama das elites indígenas, enriquecida com o comércio a longa distância ou, pelo contrário, uma representante de sociedade colonizadora, ligada à exploração dos recursos locais? Ou nem uma coisa nem outra, seria uma sacerdotisa ou mesmo uma divindade? Será que a iconografia das arrecadas e da gargantilha do Tesouro do Gaio, com representações de palmetas, rosetas, bolbos de lótus, da deusa Hathor e de grifos, corresponde apenas a uma moda ou reflectirá simbologia do quadro mágico-religioso então vivido?
Será que o Tesouro do Gaio é formado por objectos contemporâneos entre si? Como se explica então a cronologia do escaravelho com o selo do faraó Thoutmosis III (1540-1480 a.C.), conquistador da Palestina e da Síria, dos vidros ou das cabeças hatóricas bifrontes que decoram as arrecadas e que não deverão ser anteriores a meados do século VI a.C., se aceitarmos ter sido quando o faraó Amasis (568-526) conquistou Chipre que aquela iconografia se difundiu no mundo fenício-púnico?
Muitas outras questões ficarão por equacionar e as respostas às problemáticas levantadas nem sempre serão satisfatórias. Todavia, o Tesouro do Gaio, para além do que representa em termos históricos e artísticos, continuará, por muito tempo e devido a vários aspectos, a estimular a nossa criatividade e imaginação ou a despertar-nos emoções.

Mário Varela Gomes (Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa)

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